Estas
coisas de envolvermo-nos com a escrita literária e seus campos adjacentes
tornam-nos tão hipócritas que nem nos damos conta disso. Consideremos,
portanto, que a noção de hipocrisia aqui trazida é deveras literal para que se
submeta sem reservas a qualquer estereótipo preconcebido pelas e entre as
pessoas.
Ora
vejamos, ao envolvermo-nos com a escrita, criamos uma personagem a nosso gosto,
ponderação e exigência para que fale por nós de forma bela, acima de tudo, em
sessões de autoterapia a que chamamos de exercício artístico. E, sem nos
apercebermos, esse Outro (artístico) torna-se muitas vezes diferente do Eu
(sujeito biopsicosociocultural). Daí a velha e célebre frase Pessoana: “o poeta é um fingidor”.
Tudo
isto aparece-me à mente como uma pontiaguda zagaia no bojo da presa dum
caçador, logo a seguir a um flashback
onírico duma tarde inesperadamente emocionante:
Era
domingo. Estava em casa. Acompanhado. Consta-me que tive vontade de partilhar
os textos em poesia que compilei e armazenei em jeito de caderneta e que, também,
gravei-os em áudio numa tentativa de abraçar o jazz-poetry. A partilha era
mesmo intencional…claro! Vezes há em que até os que se dizem reservados e
discretos ligam aos holofotes!
Fiquei
quieto para dar tempo e sossego à moça que me acompanhava – cujo nome não me
ocorre – que, por sua vez, percorria os poemas escritos com os olhos enquanto
simultaneamente escutava, pelo reprodutor, as gravações das declamações dos
mesmos textos…feita por mim. Ela, sempre com uma expressão facial ambígua,
ficava toda atenta. Eu, estava quieto para não atrapalha-la com a minha
ansiedade em saber o que achava do meu trabalho, embora não precisasse dos seus
aplausos para continuar a escrever.
- Com ou sem eles (os aplausos) continuarei desenhando palavras – disse
para os meus botões.
O
silêncio tomou conta da sala de estar em que estávamos sentados lado a lado.
Ela, continuava atenta. Eu observava-a sorrateiramente, num olhar de quem diz: eu quero olhar mas, não quero. No
entanto, algo chamou-me atenção na atenção atenta dela. Era algo que, no
momento, comparei à atenção que um crente devoto e convicto da sua condição de
crente dedica ao momento da missa clerical: os olhos na bíblia e os ouvidos na
voz do padre.
- Puxa! Agora ultrapassei os limites do
absurdo na comparação – pensei. Equiparar o meu manuscrito à Bíblia; e a
minha declamação à leitura do padre, é algo que posso, no mínimo, considerar
inconcebível, tomando como base a natureza sugestiva e libertadora de um versus a natureza dogmática e oprimente
do outro; e, ainda, o carácter melódico, harmonioso, demasiadamente expressivo
de um versus o carácter monótono, do
ponto de vista de entoação, do outro.
Antes
que eu pensasse mais alguma coisa que me pudesse irritar ainda, ela aborda-me
com uma voz de gato: fina e plangente, e diz: olha Elísio…
Permaneci quieto para disfarçar a ansiedade que me consumia.
- epss! Os textos são maravilhosos tanto quanto
as declamações, mas…. – Mostrou-se hesitante. Eu sabia que aquele “mas” pretendia introduzir uma
adversativa.
O
meu peito parecia frágil para suportar as batidelas dum coração que decidira
bater mais forte, tirei um lenço do bolso para limpar o suor que subitamente
aparecera na ponta do nariz, os meus olhos estavam cravados nos seus: estava
ansiosíssimo. Queria ouvir o resto.
- mas -
disse eu, num tom grave, para que ela terminasse a frase.
- ah! Não, se não te vais zangar comigo.
- Não, nada disso. Podes dizer querida. Não
sou assim tão mau. – Tentava tranquiliza-la.
- É que…os textos e a declamação…são
maravilhosos MAS….parece que não foi você que produziu. Pronto falei…Parece que
os textos e a declamação foram feitos por outra pessoa que nem é daqui.
- Aé!... – Sorri, de um jeito irónico – as pessoas têm mania de medir os outros aos
palmos – acrescentei.
Ela
reparou-me e sorriu – tens razão –
disse ela.
E,
antes que eu dissesse mais alguma coisa – que pudesse esclarecer que esta coisa
de ser uma pessoa (o EU) e estar na literatura como se fosse outra pessoa (o OUTRO),
é tudo uma questão de FICCIONALIDADE…é fingimento – chega-me aos ouvidos uma
melodia linda que Morreira Chonguissa intitulou de “360 degrees (what goes around comes around)”. Era o som do meu
alarme. Interrompido o sonho, despertei. O relógio marcava 6:00 da manhã.
- Está na hora de ir à
faculdade. – Pensei.
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